Julgados cobrados na segunda fase do TJ/SP para o cargo de Juiz Substituto, realizada em 2024.
Tese fixada
Não é possível a invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento.
Ementa
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ALEGADA CONDUTA OMISSIVA E COMISSIVA DO PODER PÚBLICO NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. PROCESSOS DE APURAÇÃO E JULGAMENTO DE CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. QUESTIONAMENTOS QUANTO AO MODO DE VIDA E À VIVÊNCIA SEXUAL PREGRESSA DA VÍTIMA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ARGUIÇÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. Ofende os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana a perquirição da vítima, em processos apuratórios e julgamentos de crimes contra a dignidade sexual, quanto ao seu modo de vida e histórico de experiências sexuais. 2. A despeito da atuação dos Poderes da República, pela análise dos argumentos postos na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, é de se concluir necessário que este Supremo Tribunal, no exercício de sua competência constitucional, interprete os dispositivos impugnados pelo arguente conforme a Constituição da República, para conferir máxima efetividade aos direitos constitucionalmente postos e coibir a perpetuação de práticas que impliquem na revitimização de mulheres agredidas sexualmente. 3. Arguição julgada procedente para i) conferir interpretação conforme à Constituição à expressão “elementos alheios aos fatos objeto de apuração” posta no art. 400-A do Código de Processo Penal, para excluir a possibilidade de invocação, pelas partes ou procuradores, de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do Código de Processo Penal; ii) fica vedado o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto a vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade do acusado se beneficiar da própria torpeza; iii) conferir interpretação conforme ao art. 59 do Código Penal, para assentar ser vedado ao magistrado, na fixação da pena em crimes sexuais, valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida e iv) assentar ser dever do magistrado julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.
(ADPF 1107, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23-05-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 23-08-2024 PUBLIC 26-08-2024) Grifo nosso.
Questão
QUESTÃO 4
Considere o tema:
Dever processual de tutela da integridade física e psicológica da vítima na investigação e no julgamento de processos envolvendo crimes sexuais.
Discorra sobre o tema apresentado e responda as questões a seguir tecendo considerações normativas, doutrinárias e jurisprudenciais.
1. É legítima a prática de questionar o comportamento e os modos de vida da mulher vítima durante a investigação e o julgamento de processos envolvendo crimes sexuais?
2. O juiz deve acolher a pretensão da defesa de juntada, aos autos do processo de crime de violência contra a mulher, da certidão de antecedentes criminais da vítima e de boletins de ocorrência em que ela figure como autora ou averiguada?
Espelho de resposta da banca
"Questionamentos quanto ao modo de vida e à vivência sexual pregressa da vítima durante a investigação e o julgamento de processos envolvendo crimes sexuais e de violência contra a mulher se inserem na vedação (limitação processual) estabelecida pela Lei nº 14.245/2021 às partes e aos sujeitos processuais de “manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos” (arts. 400-A e 474-A do CPP e no art. 81, § 1º-A, da Lei 9099/95).
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1107 (Rel. Min. Carmen Lucia, j. em 23/5/2024, v.u.), conferiu interpretação conforme à Constituição à expressão “elementos alheios aos fatos objeto de apuração” posta no art. 400-A do Código de Processo Penal. Decidiu que a prática de tais questionamentos é inconstitucional, ofende os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e da igualdade entre homens e mulheres (arts. 3º, I e IV; 5º, caput e I; e 226, § 5º, CF), e caracteriza discriminação contra a mulher e violência de gênero, já que com tal prática tenta-se justificar o crime a partir do comportamento da vítima, e implica em sua revitimização no curso do processo penal.
No entendimento do STF, a consequência processual do descumprimento da norma é a nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos arts. 563 a 573 do CPP, pois o juiz tem o dever legal de coibir a prática inconstitucional e de desconsiderar aquela porventura concretizada, inclusive para calcular a pena. Ficou decidida, ainda, a vedação ao reconhecimento da nulidade na hipótese de a defesa invocar o modo de vida da vítima ou a questionar quanto à vivência sexual pregressa com essa finalidade, considerando a impossibilidade do acusado se beneficiar da própria torpeza.
A prova será ilegítima, eis que obtida com violação da norma processual.
O descumprimento da norma também acarreta conseqüências extraprocessuais, que foram expressamente estabelecidas na lei às partes e aos demais sujeitos processuais: responsabilidade civil, administrativa e penal. No que pertine ao juiz, como garantidor da integridade física e psicológica da vítima por dever legal, ele será penalmente responsável por omissão (art. 13, § 2º, do Código Penal), como participe da conduta criminosa praticada pela parte, advogados ou Ministério Público, ou por comissão, conduta que poderá tipificar, por exemplo: a) crime de violência psicológica contra a mulher (CP art. 147-B); b) crime do art. 33, caput, da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13869/2019); c) crime de violência institucional (art. 15-A da Lei nº 13.869/2019); d) Calúnia, Difamação e Injúria.
Nesse contexto, voltado a proteger a integridade física e psicológica da vítima nos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica e contra a mulher, de relevo outra decisão do STF, que julgou parcialmente procedente a ADPF nº 779 (rel. Min. Dias Tóffoli, j. 1º/8/2023, v.u.) para “firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF), da proteção da vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF)” e “conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 23, inciso II, ao art. 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa”.
Legislação correlata (CPP)
Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021) (Vide ADPF 1107)
I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)
II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)