O fato de o réu mentir em interrogatório judicial, imputando prática criminosa a terceiro, não autoriza a majoração da pena-base

Julgado cobrado na primeira fase do concurso do MP/SP (Promotor de Justiça Substituto), realizada em 2025.

 

Tese fixada pelo STJ

O fato de o réu mentir em interrogatório judicial, imputando prática criminosa a terceiro, não autoriza a majoração da pena-base.


Ementa 

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PRIMEIRA FASE. AUMENTO DA PENA-BASE. NEMO TENETUR SE DETEGERE. DIREITO DE MENTIR. INEXISTÊNCIA. TOLERÂNCIA JURÍDICA NÃO ABSOLUTA. SUPOSTA MENTIRA DO RÉU NO INTERROGATÓRIO. ATRIBUIÇÃO FALSA DE CRIME A OUTREM. VALORAÇÃO COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL NEGATIVA. IMPOSSIBILIDADE. FATO NÃO COMPROVADO E POSTERIOR AO DELITO IMPUTADO NA DENÚNCIA. FUNDAMENTO INIDÔNEO. ORDEM CONCEDIDA.

1. O direito a não se autoincriminar (do qual deriva, por lógica, o direito ao silêncio) é regra antiga e inerente ao processo penal de cariz democrático e racional. Constitui, nos dizeres de Ferrajoli, "a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recebida desde o século XVII no direito inglês" (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal, tradução coletiva, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 486).

2. Se, por um lado, a sua estatura é incontroversa, por outro, os seus limites geram acirrados debates na doutrina, especialmente no que concerne ao exercício da autodefesa no interrogatório.

3. Não é adequado admitir que haja, propriamente, um "direito de mentir". A rigor, o que existe é uma tolerância jurídica - não absoluta - em relação ao falseamento da verdade pelo réu, sobretudo em virtude da ausência de criminalização do perjúrio no Brasil, conduta cuja tipificação penal é objeto de alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional (por exemplo: PL 3148/21 e PL 4192/2015).

4. Tolerância não absoluta porque, em algumas oportunidades, a própria lei cuida de atribuir relevância penal à mentira ou outras formas de encobrir a verdade. É o que ocorre, por exemplo, nos crimes de autoacusação falsa (art. 341 do CP) e falsa identidade (art. 307 do CP), ainda que praticado este em nome da autodefesa (Súmula n. 522 do STJ: "A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa"). Também é o que sucede nas hipóteses em que, para defender-se, o acusado comete fraude processual (art. 347, parágrafo único, do CP) ou coage testemunhas (art. 344 do CP), a evidenciar que, se, por um lado, o nemo tenetur se detegere é garantia fundamental, por outro, encontra importantes limitações no ordenamento jurídico pátrio.

5. De todo modo, ainda que o falseamento da verdade eventualmente possa - a depender do caso e se cabalmente comprovado - justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa que essa prática, no interrogatório, autorize a exasperação da pena-base do acusado.

6. O conceito de culpabilidade, como circunstância judicial prevista no art. 59 do Código Penal, está relacionado com a reprovabilidade/censurabilidade da conduta do agente, de forma que deve o magistrado, quando da aplicação da pena-base, dimensioná-la pelo nível de intensidade da reprovação penal e expor sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento. Trata-se de aferir o grau de reprovabilidade do fato criminoso praticado pelo réu.

7. No caso dos autos, de acordo com a sentença, a culpabilidade do acusado foi valorada negativamente sob o argumento de que ele "tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (seu vizinho J.) a responsabilidade por ter "plantado" as drogas e armas em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia. Essa conclusão, no sentido de ser uma falsa imputação, restou comprovada pelo depoimento de J. em juízo, o qual nada referiu sobre as alegações do réu" (fl. 275).

8. De início, cabe salientar que a simples circunstância de o vizinho haver negado esses fatos quando ouvido em juízo na condição de informante não permite afirmar a falsidade da versão do acusado;

até porque, se houvesse confirmado a alegação do réu, tal depoente - que nem sequer prestou compromisso de dizer a verdade - estaria admitindo a prática de crime e passaria a ocupar o lugar do paciente como imputado. Assim, se, de um lado, a negativa do terceiro enfraquece a hipótese fática alternativa apresentada em autodefesa pelo paciente, de outro, não é suficiente para responsabilizá-lo penalmente pelo que disse no interrogatório.

9. Do contrário, toda vez que qualquer réu alegasse haver sofrido algum tipo de abuso policial e a prática desse abuso fosse negada pelo respectivo agente de segurança por ocasião de seu testemunho - situação absolutamente corriqueira no cotidiano da praxe forense -, isso bastaria para incrementar a pena do réu ou mesmo fazer-lhe incorrer em crime autônomo. Restaria ao interrogado somente confessar, ficar em silêncio ou, no máximo, negar de forma vaga e genérica a imputação, a fim de não incorrer em possível delito, o que representaria grave fator de intimidação contra a exposição de possíveis ilegalidades praticadas por agentes estatais na persecução penal.

10. Estendido esse raciocínio às audiências de custódia, nas quais um dos propósitos centrais da oitiva do preso é justamente o de verificar a legalidade da prisão em flagrante e a possível ocorrência de abuso, essa finalidade primordial seria em boa medida frustrada, diante do risco que representaria para o indivíduo alegar qualquer violência: uma simples negativa do policial levaria o autuado a responder por mais um crime ou ter sua futura reprimenda agravada. No cenário atual, em que a veracidade da palavra dos policiais ainda é vista como dogma praticamente inquestionável por muitos tribunais, alegar a ocorrência de abuso seria demasiadamente arriscado para o preso, o que implicaria o aumento das já elevadas cifras ocultas da tortura praticada por agentes estatais.

11. De toda sorte, ainda que, por hipótese, se pudesse considerar provado que o réu atribuiu falsamente crime a terceiro no interrogatório (o que não é o caso), tal acontecimento não diria respeito à sua culpabilidade, a qual, conforme assentado anteriormente, relaciona-se ao grau de reprovabilidade pessoal da conduta imputada ao acusado. Isso porque o interrogatório constitui fato posterior à prática da infração penal, de modo que não pode ser usado retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de fato praticado no passado.

12. Com efeito, o exame da sanção penal cabível deve ser realizado, em regra, com base somente em elementos existentes até o momento da prática do crime imputado, ressalvados, naturalmente: a) o exame das consequências do delito, que, embora posteriores, representam mero desdobramento causal direto dele, e não novas e futuras condutas do acusado retroativamente valoradas; b) o superveniente trânsito em julgado de condenação por fato praticado no passado, uma vez que representa a simples declaração jurídica da existência de evento pretérito.

13. Nem mesmo nas circunstâncias da personalidade ou da conduta social seria possível considerar desfavoravelmente a mentira do réu em interrogatório judicial. O paralelo feito por alguns doutrinadores com a confissão (se a confissão revela aspecto favorável da personalidade e atenua a pena, a mentira supostamente revelaria o oposto e poderia autorizar o seu aumento), embora interessante, é assimétrico e não permite que dele se extraia tal conclusão.

14. A confissão e diversos outros institutos que permitem o abrandamento da sanção (colaboração premiada, arrependimento posterior etc.) integram o chamado Direito penal premial e se justificam como ferramentas para valorizar e estimular a postura que o réu adota depois da prática do delito para mitigar seus efeitos ou facilitar a atividade estatal na sua persecução. Diferente, porém, é a análise sobre o que pode legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente causal, do fato imputado na denúncia (por exemplo, nos termos acima esclarecidos, as consequências do crime).

15. O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos depois (no caso, o crime foi praticado em maio de 2013 e o interrogatório do réu ocorreu em agosto de 2019, mais de 6 anos depois).

16. Ordem concedida para reconhecer a inidoneidade do fundamento usado para exasperar a pena-base e reduzir a sanção do réu a 5 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e 500 dias-multa, nos autos da condenação objeto do Processo n. 0000012-53.2014.8.21.0134.

(HC n. 834.126/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 13/9/2023.) Grifo nosso.


Questão do MP/SP

Assinale a alternativa correta a respeito das provas no processo penal. 

(A) Os prints de WhatsApp somente terão valor probatório se forem autenticados por ata notarial ou por perícia em um dos aparelhos usados para transmissão ou recepção das mensagens, ou se forem validados por plataforma que atenda aos padrões e princípios de coleta e preservação da cadeia de custódia de provas digitais, com base nas recomendações forenses aderentes à ISO 27037:2013 (Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital). 

(B) A serendipidade (encontro fortuito de provas) não é admitida no ordenamento jurídico, por caracterizar a hipótese de fishing expedition (pescaria probatória), prática que viola as garantias constitucionais da intimidade e da privacidade. 

(C) É pacífico no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que o fato de o agente mentir acerca da ocorrência delituosa constitui violação à lealdade e boa-fé processual, podendo servir como circunstância judicial desfavorável na fixação da pena (personalidade ou conduta social). 

(D) O Supremo Tribunal Federal proclamou que não foi recepcionada a expressão “para o interrogatório” constante do artigo 260 do Código de Processo Penal, e declarou a inconstitucionalidade da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório policial ou judicial. Tal decisão, porém, não abrange a condução coercitiva do investigado ou acusado para atos que dependam da sua presença, como a identificação criminal. 

(E) O depoimento especial de crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência não pode ser realizado perante a autoridade policial, pois a lei exige a observância do rito específico para a produção antecipada de prova judicial. Assim, cabe à autoridade policial determinar a realização de escuta especializada e, caso considere necessário o depoimento especial, representar ao Ministério Público para que este proponha a ação cautelar de antecipação de prova.

Gabarito: D